19 de mar. de 2012

O juízo de retratação no Recurso em Sentido Estrito (CPP, art. 589) e a (necessária)– e concreta – fundamentação judicial

O objetivo do presente texto é por em destaque uma questão importantíssima no âmbito do Processo Penal, mas pouco discutida na doutrina e na jurisprudência diz respeito ao juízo de retratação quando da interposição do recurso em sentido estrito, previsto no artigo 589 daquele Diploma.


A Constituição Federal no artigo 5º, LIV prevê expressamente, o direito de todos a um devido processo legal, que em reiteradas decisões do Ínclito Supremo Tribunal Federal (HC 94.601, rel. Min. CELSO DE MELLO – HC 94.016, rel. Min. CELSO DE MELLO – AP 470-AgRg, rel. Min. JOAQUIM BARBOSA e AP 420, rel. Min. JOAQUIM BARBOSA), nos mostra como elementos essenciais: (a) direito ao processo (garantia de acesso ao Poder Judiciário); (b) direito à citação e ao conhecimento prévio do teor da acusação; (c) direito a um julgamento público e célere, sem dilações indevidas; (d) direito ao contraditório e à plenitude de defesa (direito à autodefesa e à defesa técnica); (e) direito de não ser processado e julgado com base em leis “ex post facto”; (f) direito à igualdade entre as partes; (g) direito de não ser processado com fundamento em provas revestidas de ilicitude; (h) direito ao benefício da gratuidade; (i) direito à observância do princípio do juiz natural; (j) direito ao silêncio (privilégio contra a auto-incriminação); (l) direito à prova; e (m) direito de presença e de “participação ativa” nos atos de interrogatório judicial dos demais litisconsortes penais passivos, quando existentes.
Na vida prática, é muito como quando da interposição do recurso em sentido estrito, no momento da realização do juízo de retratação pelo Magistrado, que se diga, em simples linhas “mantenho a decisão por seus próprios fundamentos”.
O artigo 589 do Código de Processo Penal, ao regular parte do procedimento relativo ao recurso em sentido estrito, impõe uma obrigação ao magistrado, qual seja:
“Art. 589 – Com a resposta do recorrido ou sem ela, será o recurso concluso ao juiz, que, dentro de 2 (dois) dias, reformará ou sustentará o seu despacho (...).
Por sua vez, é importante lembrar que a Constituição Federal, expressamente, no artigo 93, IX, impõe aos magistrados a obrigação de fundamentar suas decisões:
“Art. 93 – (...)
IX– todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade (...)”.
A simples leitura do dispositivo legal conjugada com a norma constitucional demonstra de maneira muito clara que não estamos diante de uma situação facultativa quando da análise do recurso: ao contrário, é absolutamente imperioso e necessário o enfrentamento das razões recursais para que, então, a decisão seja reformada ou sustentada.
Tendo em vista que no âmbito do recurso em sentido estrito existem duas oportunidades de ‘enfrentamento’ dos argumentos apresentados (juízo originário e Tribunal), é, sempre, absolutamente imperioso e necessário que ocorra a concreta análise das questões em primeira instância, e não como geralmente ocorre, ou seja, limitar-se a Autoridade Judiciária a afirmar que os fundamentos anteriores estavam mantidos.
O autorizado magistério doutrinário (FAUZI HASSAN CHOUKR, “Código de Processo Penal, Comentários Consolidados e Crítica Jurisprudencial”, 2ª ed., págs. 837/839, Edit. Lumen Juris, 2007, RJ; FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO, “Código de Processo Penal Comentado”, 12ª ed., pág. 346, Edit. Saraiva, 2009, SP; JULIO FABBRINI MIRABETE, “Processo Penal”, 17ªed., pág. 683, Edit. Atlas, 2005, SP) entende que esta situação é absolutamente inaceitável, eis que não bastasse o manifesto e evidente desrespeito ao procedimento, gera, ainda, manifesta violação ao postulado constitucional do devido processo legal, eis que se retira da Parte o direito de ter suas alegações devidamente analisadas conforme impõe a Lei (CPP, art. 589), fazendo nascer, assim, uma nulidade absoluta do processo.
Neste ponto, são extremamente relevantes as palavras do eminente JULIO FABBRINI MIRABETE (“Código de Processo Penal” 11ªed., pág. 1462/1463, Edit. Atlas, 2003, SP):
“(...).A falta do despacho de reexame ou sua deficiência obriga o Tribunal a converter o julgamento em diligência para que o juiz profira despacho fundamentado, havendo nulidade dos atos praticados a partir do despacho falho ou de sua falta. (...)”.
A jurisprudência não difere do entendimento, posicionando-se pela ocorrência de nulidade absoluta do processo quando não cumprido adequadamente o disposto no artigo 589 do Código de Processo Penal:
“Sendo o recurso em sentido estrito um recurso de retratação, a provisão judicial de primeira instância só se esgota com pronunciamento expresso do magistrado sobre se mantém ou não a decisão recorrida, de modo que o julgamento do recurso por parte do tribunal ad quem, sem observância do disposto no artigo 589 do CPP implicaria supressão de um grau de jurisdição.” (TJRS, RT 555/416).
“(...).RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. JUÍZO DE RETRATAÇÃO. AUSÊNCIA. NULIDADE.
1. A ausência do chamado ‘juízo de retratação, próprio do recurso em sentido estrito importa em nulidade, a ser declarada a partir do despacho que determinou a subida do recurso.
2. Recurso conhecido e provido”.
(STJ, REsp 83.671, rel. Min. EDSON VIDIGAL).
“Art. 589 do CPP.A norma do artigo, garantia de defesa, deve ser cumprida, sustentando o juiz, ou reformando o despacho, oposto o recurso em sentido estrito.
A falta de manifestação, nesse sentido, importa em nulidade, a partir do despacho”.
(STF, RE 97.217, rel. p/acórdão Min. OSCAR CORRÊA).
“SENTENÇA DE PRONÚNCIA – REFORMA – SUSTENTAÇÃO– DEVIDO PROCESSO LEGAL. A teor do artigo 589 do Código de Processo Penal, o juiz, diante do recurso em sentido estrito interposto contra a sentença de pronúncia, a reformará ou sustentará. O emprego deste último vocábulo, com sentido próprio a distingui-lo de simples manutenção, implica a necessidade de abordagem das razões apresentadas. Insubsistência de ato revelador não de sustentação, mas sim de manutenção”.
(STF, HC 72.640, rel. Min. MARCO AURÉLIO).
“(...).
III. Recurso em sentido estrito contra decisão de pronúncia: nulidade da remessa ao Tribunal de Justiça, por ausência da sustentação ou retratação do juízo de pronúncia: se o Relator do recurso em sentido estrito reconheceu que o despacho que havia nos autos não atendia ao art. 589 do C. Pr. Penal e por isso determinou o retorno dos autos ao Juízo local, não poderia este apenas se remeter àquele mesmo despacho e novamente enviar os autos ao Tribunal de Justiça.
IV. Habeas corpus: deferimento, de ofício, para anular o julgamento do recurso em sentido estrito e determinar que os autos do processo principal sejam devolvidos ao Juízo de primeiro grau para que cumpra o despacho do relator do recurso em sentido estrito; (...)”. (STF, AgRg no HC 88.708, rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE).
É absolutamente inaceitável, portanto, esta situação que se observa –lamentavelmente com muita frequência, diga-se de passagem –, nos processos onde consta tal recurso, eis que por se tratar de um momento essencial e impositivo, faz com que, argumentos expostos não sejam analisados, em flagrante (e frontal) desrespeito aos direitos à prova e a plenitude de defesa, corolários do devido processo legal. É muito importante destacar, neste ponto, outro argumento essencial para reforçar o nosso fundamento.
Não bastasse se tratar de algo essencial ao recurso em sentido estrito (CPP, art. 589), e por se tratar de um momento que, necessariamente, deve ser fundamentado (CF, art. 93, IX), devemos deixar bem claro que, geralmente, ocorre, ainda, acréscimo de fundamentos aos anteriormente utilizados.
Quando da apresentação das alegações finais da Defesa, a matéria ali posta à apreciação do Magistrado diz respeito ao que consta da peça inaugural da persecução penal, até os as alegações do Ministério Público.
Ocorre que no momento da apresentação do recurso, o profissional não repete simplesmente a tese já apresentada, mas, ao contrário, a reforça, ‘atacando’,também, os fundamentos da decisão impugnada, ou seja: novos fundamentos são apresentados via de regra!
Como, portanto, o Magistrado, em sede de juízo de retratação, observando novos argumentos – não apresentados anteriormente – simplesmente diz que mantém os fundamentos que apresentou na referida decisão? É absolutamente inadmissível tal atitude!
Verifica-se, portanto, que não há que se falar em mera irregularidade e / ou nulidade relativa deste episódio, mas, sim, em nulidade absoluta do processo, conforme nos ensina a mais abalizada doutrina (ROGÉRIO LAURIA TUCCI, “Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro”, 2ª ed., pág. 234, Edit. RT, SP, 2004).
ADA PELLEGRINI GRINOVER, ANTONIO SCARANCE FERNANDES e ANTONIO MAGALHÃES (“As nulidades no processo penal”, 8ª ed., págs. 256/257, Edit. RT, SP, 2004) sobre o tema, ensinam que:
“essa garantia da motivação (...) compreende (...) 3) a consideração atenta dos argumentos e provas trazidas aos autos. (...). Nessa perspectiva, o vício de fundamentação abrange a hipótese em que existem alguma motivação, mas é ela insuficiente (...) se o juiz deixa de apreciar questão importante apresentada pela (...) defesa nas razões finais”
ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO (“A motivação das decisões penais”, págs. 176/177 e 202/203, Edit., RT, 2001, SP) é exatamente no mesmo sentido:
“Se a decisão só pode surgir do exame dos elementos que resultam dessas atividades contrapostas, que visam exatamente a influenciar o convencimento do juiz, é evidente que o discurso justificativo dessa mesma decisão não poder ser algo semelhante a um monólogo, em que são apresentados argumentos de autoridade, mas, ao contrário, deve possuir um caráter dialógico capaz de dar conta da real consideração de todos os dados trazidos à discussão da causa pelos interessados no provimento. (...).
A nulidade no caso é absoluta, pois o ato processual inconstitucional, quando não juridicamente inexistente, não pode dar lugar à nulidade relativa, uma vez que as garatias processuais – constitucionais, mesmo quando aparentamente postas em benefício da parte, visam em primeiro lugar ao interesse público na condução do processo segundo as regras do devido processo legal.
Isso significa, em primeiro lugar, que o seu reconhecimento não depende de provocação da parte interessada: o próprio juiz ou tribunal, percebendo a irregularidade, deve declarar, desde logo, a invalidade e ineficácia da decisão proferida sem uma integral e adequada justificação, determinando, se for o caso, que outra seja pronunciada.
Ademais, dizer que a nulidade é absoluta implica também admitir que o prejuízo acarretado pelo vício é evidente, dispensando a demonstração de dano para a parte ou para a própria decisão. No caso de decisão judicial não fundamentada, o prejuízo fica induvidosamente revelado pela frustração de todos aqueles objetivos políticos e processuais que determinam a exigência constitucional.(...)”.
JÚLIO FABBRINI MIRABETE (“Processo Penal”, 5ª ed., pág. 441/442, Edit. Atlas, 1996, SP) é no mesmo sentido, afirmando que “(...) a sentença deve ser completa, ou seja, deve o juiz examinar toda a matéria articulada pela acusação e pela defesa. É nula a sentença que deixa de considerar todos os fatos articulados na denúncia contra o réu, pis, nesse caso, não haverá, a rigor, sentença com relação ao fato ou fatos não apreciados no decisório (sentença citra petita). (...) é eivada de nulidade a sentença que não responde às alegações expedidas pela defesa, seja de mérito, seja de preliminaers arguida oportunamente”.
A jurisprudência é pacífica ao acompanhar tal entendimento, entendendo, também, pela ocorrência de nulidade absoluta do processo quando não ocorrer o enfrentamento de argumentos, especialmente os da Defesa (TACrimSP, RJTACRIM 12/127 – TACrimSP, RJTACRIM 13/136-142 – TACrimSP, RJTACRIM 14/143-144 -TACrimSP, RJTACRIM 15/162, 165, 171 – TACrimSP, RJTACRIM 16/159-160 – TACrimSP, RJTACRIM 19/165-167 – TACrimSP, RJTACRIM 23/399 – TACrimSP, RJTACRIM 27/202 –TACrimSP, RJTACRIM 29/264-265 – TACrimSP, RJTACRIM 29/410 – TACrimSP, RJTACRIM 32/292, 332-333 – TACrimSP, RJTACRIM 32/330 – TACrimSP, RJTACRIM 36/540 –TACrimSP, RJTACRIM 44/223 – TACrimSP, RJTACRIM 46/335 – TACrimSP, RT 569/340 –TACrimSP, RT 580/373 – TACrimSP, RT 594/365 – TACrimSP, RT 600/369 – TACrimSP, RT 609/353 - TACrimSP, RT 612/348 – TACrimSP, RT 721/399 – TJRS, RJTJERGS 202/175– TJSC, JCAT 77/594 – TJSC, JCAT 63/277 – TJSP, JTJ 166/318 – TJSP, JTJ 220/338– TJSP, JTJ 237/322 – TJSP, RT 761/604 – STF, RHC 58.880, rel. Min. RAFAEL MAYER – HC 68.322, rel. Min. PAULO BROSSARD – HC 69.516, rel. Min. PAULO BROSSARD – HC 73.949, rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA – HC 76.365, rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – HC 77.824, rel. Min. NELSON JOBIM):
“(...) ao juiz (...), na sua fundamentação deve (...) abordar as questões trazidas pelas partes, enfrentando toda a matéria alegada e discutida. Ignorá-la, relevá-la ao omisso, constitui indubitável cerceamento de defesa, e implica nulidade da mesma, por ausência de consideração do exame sobre os pontos debatidos nos autos”. (TJSP, RT 608/316).
“(...)É nula a sentença que não responde a todas as alegações da Defesa, porque assim se ofende à garantia constitucional da ampla defesa e do contraditório (...)”. (TACrimSP, RJTACRIM 43/271).
“Ocorre nulidade insanável, por cerceamento de defesa, na hipótese e que a sentença não enfrenta as teses defensivas (...) em respeito a princípios de natureza processual e constitucional, essas alegações devem ser apreciadas e somente podem ser rejeitadas mediante decisão devidamente fundamentada, sendo que não cabe falar em preclusão se está em jogo a liberdade individual, devendo ser observada a legalidade, com todo o rigor, por haver um bem maior a ser preservado, direito fundamental do cidadão, ainda que infrator”. (TACrimSP, RJTACRIM 44/468).
“Ocorre nulidade da sentença que não aprecia tese suscitada pela Defesa (...), pois caracterizado o cerceamento da atividade defensória”. (TACrimSP, RJTACRIM 45/208).
“(...)- DECISÕES QUE NÃO ANALISARAM OS ARGUMENTOS SUSCITADOS PELA DEFESA DO RÉU –EXIGÊNCIA CONSTITUCIONAL DE MOTIVAÇÃO DOS ATOS DECISÓRIOS – INOBSERVÂNCIA –NULIDADE DO ACÓRDÃO – (...).
A FUNDAMENTAÇÃO CONSTITUI PRESSUPOSTO DE LEGITIMIDADE DAS DECISÕES JUDICIAIS.
-A fundamentação dos atos decisórios qualifica-se como pressuposto constitucional de validade e eficácia das decisões emanadas do Poder Judiciário. A inobservância do dever imposto pelo art. 93, IX, da Carta Política, precisamente por traduzir grave transgressão de natureza constitucional, afeta a legitimidade jurídica do ato decisório e gera, de maneira irremissível, a consequente nulidade do pronunciamento judicial. Precedentes.

A DECISÃO JUDICIAL DEVE ANALISAR TODAS AS QUESTÕES SUSCITADAS PELA DEFESA DO RÉU.
-Reveste-se de nulidade o ato decisório, que, descumprindo o mandamento constitucional que impõe a qualquer Juiz ou Tribunal o dever de motivar a sentença ou o acórdão, deixa de examinar, com sensível prejuízo para o réu, fundamento relevante em que se apóia a defesa técnica do acusado”. (STF, HC 74.073, rel. Min. CELSO DE MELLO).
“(...).É absolutamente nula a decisão que, em processo criminal, deixa de apreciar pedido (...) formulado no recurso da defesa”. (STF, HC 87.917, rel. Min. CEZAR PELUSO).
Concluímos, portanto, que quando do juízo de retratação do recurso em sentido estrito é absolutamente imperiosa a concreta fundamentação das razões apresentadas, sob pena de nulidade absoluta do ato.
João Carlos Pereira Filho
Advogado Criminal
249.729/ OAB-SP